quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
Saúde brasileira e compaixão evangélica
"Jesus percorria todas as cidades e povoados,
ensinando em suas sinagogas,
pregando a Boa Nova do
Evangelho,
e curando todo tipo de
doença e enfermidade.
Vendo as multidões,
Jesus teve compaixão,
porque estavam cansadas e abatidas,
como ovelhas que não
têm pastor” (Mt 9, 35-36).
Dor sem remédio, doença sem cura, enfermidade crônica
– eis como aparece o sistema de saúde brasileiro no dia-a-dia da população. As
imagens recentes, especialmente nas capitais de Salvador e Rio de Janeiro, já
se tornaram "pão nosso de cada dia”: fila interminável para marcar
consulta, muitas vezes somente para o próximo ano; idosos, enfermos, pessoas em
cadeira de rodas, gente visivelmente debilitada, chegando a dormir na fila para
não perder o lugar; alguns morrendo antes de serem atendidos; senhas que não
alcançam a todos, deixando boa parte à margem... E coisas desse tipo! Chagas
vivas de um sistema de saúde enfermiço.
Apesar de comuns e amplamente divulgadas pelos
meios de comunicação social, tais cenas chocam e impressionam duplamente a
opinião pública: de um lado, rostos e membros mutilados por um sofrimento
acumulado, expostos à luz do sol e da mídia, feridas que parecem jamais
cicatrizar; de outro lado, o descaso dos funcionários, atendentes e médicos,
mas de modo particular das autoridades de primeiro escalão do sistema de saúde,
em nível municipal, estadual e nacional.
Dos postos e ambulatórios de atendimento
assistencial e imediato ao Ministério da Saúde, passando por hospitais,
laboratórios e farmácias, planos de saúde, o que se vê é uma rede cheia de nós,
de curtos-circuitos, onde sobram os males e faltam soluções, sobram as dores e
faltam remédios. Um verdadeiro labirinto sem saída, em que emperram, se
engavetam ou são adiadas exames, consultas, cirurgias. Em nenhum outro setor
das políticas públicas é tão evidente e flagrante o jogo de empurra-empurra.
Das casas e ruas, dos pontos de ônibus e feiras,
dos botecos e supermercados, dos campos e praças – levanta-se uma única
pergunta: o que está faltando? Recursos
públicos? Certamente não, pois eles aparecem com extrema abundância em outras
áreas, especialmente nos incentivos fiscais à indústria e ao comércio, ao
agronegócio e às grande obras do PAC, como se o crescimento a qualquer preço
fosse a "panaceia para todos os males”. Sem falar dos gastos com a máquina
administrativa dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário, e
deixando de lado os desvios com a corrupção.
Segue de pé a
pergunta: o que está faltando? Orçamento
para a saúde pública? Também não, porque ele existe, mas muitas vezes é
contingenciado (como o são os gastos com educação, transporte, segurança,
infraestrutura, calamidades, etc.), em vistas de outras "urgências
governamentais”. O que importa é manter a porcentagem do PIB em permanente
ascensão, satisfazendo, por exemplo, o transporte privado, o consumo da classe
média ou os lucros estratosféricos do sistema financeiro (leia-se Bradesco,
Itaú, Santander...). Deixemos de lado, uma vez mais, os gastos com a Copa do
Mundo e as Olimpíadas, os quais, por si só, exigiriam um capítulo à parte.
A pergunta é teimosa como a própria dor: o que está
faltando? Talvez uma concepção diferente
da saúde pública (para não falar de outras áreas). O que prevalece em geral é a
visão mercantilista. Os serviços se convertem em oportunidades de acúmulo de
capital. Os direitos adquiridos se reconvertem em mercadorias a ser negociada
na férrea lei da oferta procura. No contexto do mercado total, tudo se
transforma em bens de troca, incluindo a uma consulta urgente, sob risco de
morte; os alimentos da cesta básica, em meio à miséria e fome; o remédio
indispensável e ininterrupto, que subordina a própria sobrevivência; o
deslocamento para o trabalho, longo, caro e cansativo; o sexo, o prazer e o
lazer; e até os bens relacionados ao sagrado.
Caminhando para a conclusão, vale retomar as
palavras evangélicas da epígrafe. Dor, fome e solidão constituem três irmãs
siamesas: não podem esperar! É isso o que mostra a prática de Jesus. Sua
caravana nunca atropela quem sofre, nunca abandona e necessitados. Sempre se
detém diante o grito que vem dos pobres (é o caso dos cegos de nascença, da
mulher que sofria de fluxo de sangue e de tantos outros). Grito tanto mais
eloquente quanto mais silencioso e silenciado. Os sem vez e sem voz encontram
profunda repercussão no coração de Jesus. Daí sua aguda atenção aos mudos e
mutilados da história, mutilados no corpo, na alma, nos direitos –
"multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”.
No ponto final, uma pequena luz à insistente
pergunta: o que está faltando? Quem sabe uma prática política fundamentada na
ética e nos valores acumulados pela humanidade ao longo dos séculos. Nesta
perspectiva, o que está em jogo não são os privilégios e o patrimônio das
classes poderosas e dominantes, e sim o bem comum da população como um todo.
Creio não ser inoportuno o critério da "compaixão evangélica” como
barômetro das decisões a serem tomadas diante dos setores de baixa renda,
evitando sempre o fundamentalismo e o obscurantismo religioso, que tanto mal
semearam nas trilhas da história.
No fundo, nada de novo, apenas o regime democrático
levado a sério, não somente no espetáculo das eleições e campanhas, urnas e
votos; mas, sobretudo, da partilha justa e equitativa, fraterna e solidária da
riqueza produzida por toda a nação. Mais do que "crescer para depois
dividir o bolo” (como dizia Delfim Neto em anos passados), o que se necessita é
abrir oportunidades a todos, numa economia nova em termos sociais, políticos,
culturais e ecológicos. Boas iniciativas têm sido criadas pelos últimos governos,
mas esse enfoque político e econômico requer novos canais, instrumentos e
mecanismos de participação popular, no sentido de controlar a ação de seus
representantes políticos, de decidir sobre as políticas públicas, como também
de controlar o orçamento em todos os níveis.
Numa palavra: socializar em termos cada vez mais
vastos e eficazes três questões de fundamental importância para uma economia
justa, solidária e sustentável: o que produzir? Como produzir? E para quem
produzir?
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais – 07/12/12
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