Rubens Alves ofereceu
muitas contribuições a nossa sociedade, esse texto é uma delas. Quero
compartilhar como reflexão para este período de campanha eleitoral, e também para homenageá-lo,
por sua “partida”.
Sobre política e jardinagem
Rubem Alves – 2000
Escrevo para você, jovem, para seduzi-lo à vocação
política. Talvez haja um jardineiro adormecido dentro de você.
DE
TODAS as vocações, a política é a mais nobre. Vocação, do latim «vocare”, quer
dizer “chamado”. Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um “fazer”.
No lugar desse “fazer”, o vocacionado quer “fazer amor”com o mundo.
Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.
“Política”
vem de “polis”, cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro,
ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade, O
político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim,
estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.
Talvez
por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades;
sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma
cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu “o que é
política?”, ele nos responderia: “A arte da jardinagem aplicada às coisas
públicas”.
O
político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é
tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si
mesmo. De que vale um pequeno jardim, se a sua volta está o deserto? É preciso
que o deserto inteiro se transforme em jardim.
Amo
a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela e fraca. O
escritor tem amor, mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por
vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins
em jardins de verdade.
A
vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que
Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o
grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço
privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. Conheci e conheço
muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de
esperança.
Vocação
é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação.
Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela
se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela
alegria de fazer amor. O profissional não ama a mu1her. Ele ama o dinheiro que
recebe dela. É um gigolô.
Todas
as vocações podem ser transformadas em profissões. O jardineiro por vocação ama
o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para
construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor
aumentem o deserto e o sofrimento.
Assim
é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então, enunciar
minha segunda tese: de todas as profissões, a política é a mais vil. O que
explica o desencanto total do povo, em relação à política. Guimarães Rosa,
questionado por Günter Lorenz se ele se considerava político, respondeu: “Eu
jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade. Ao
contrário dos‘legítimos’ políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O
político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso
na ressurreição do homem”.
Quem
pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muitos
anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las.
Nosso
futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por
profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm
coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de ser confundidos com gigolôs e de
ter de conviver com gigolôs.
Escrevo
para você, jovem, para seduzi-lo à vocação política. Talvez haja um jardineiro
adormecido dentro de você. A escuta da vocação é difícil, porque ela é
perturbada pela gritaria das escolhas esperadas, normais, medicina, engenharia,
computação, direito, ciência. Todas elas são legítimas, se forem vocação. Mas
todas elas são afunilantes: vão colocá-lo num pequeno canto do jardim, muito
distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria muito mais
fascinante participar dos destinos do jardim?
Acabamos
de celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao
chegar, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim.
Selvas são cruéis e insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma
selva é uma parte da natureza ainda não tocada pela mão do homem.
Aquela
selva poderia ter sido transformada num jardim. Não foi. Os que sobre ela
agiram não eram jardineiros, mas lenhadores e madeireiros. Foi assim que a
selva, que poderia ter se tornado jardim, para a felicidade de todos, foi sendo
transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde poucos
encontram vida e prazer.
Há
descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos.
Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos
começar a traçar um novo destino. Então, em vez de desertos e jardins privados,
teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a
paciência de plantar árvores em cuja sombra nunca se assentariam.
Rubem Alves- educador, escritor e psicanalista, é
professor emérito da Universidade Estadual de Campinas. É autor de “Entre a
Ciência e Sapiência: o Dilema da Educação” (Edições Loyola), entre outras
obras.