Os
tempos de crise são um terreno fértil para os discursos de ódio e apelos
autoritários. Confrontá-los no dia-a-dia é uma forma de evitar que se tornem,
um dia, projetos reais - por Matheus Pichonelli — publicado 06/03/2015
Tenho a péssima mania de responder
absurdos com silêncio. Quanto maior o absurdo, menor a vontade de
falar. Percebi a gravidade dessa relação porque tenho andado muito quieto
ultimamente. A vida em rede me acostumou mal: habituado a conversar com quem já
tem uma predisposição em ouvir, aprendi a despejar na internet, não sem certa
arrogância, tudo o que tinha vontade de dizer e não disse quando o taxista
falou que a cidade só teria jeito quando pegassem o bairro pobre, jogassem
gasolina e botassem fogo. Ou quando a socialite levantou a taça de espumante
e, com um olho na piscina e outro na bolsa Louis Vuitton, se disse assustada
com a calamidade em que vivemos no Brasil.
Tudo começou, acho, na adolescência,
quando a vizinha gente-boa levou uma tarde a me desejar boa sorte na minha
viagem a São Paulo, onde dali em diante eu passaria a morar e estudar.
Atenciosamente, ela me deu um roteiro de passeios, dicas culturas e cuidados na
metrópole. Ao fim da conversa, soltou um “só tome cuidado porque é uma cidade
infestada por imigrantes, e eles estão acabando com tudo”. Ainda hoje me
questiono por que não a rebati, ali, na lata. Foi porque só tinha 19 anos? Por
não querer ser indelicado? Para não azedar a boa vizinhança? Mas de que vale
ter vizinhos assim, que só te respeitam porque te veem como um igual?
Na conversa, ela me pedia para reparar
como os imigrantes de vários sotaques se espalhavam em nossa cidade do interior
trazendo sujeira e insegurança. “Em São Paulo é ainda pior”, reforçava. Lembrei
que, naquela época, uma série de assaltos a repúblicas estudantis das
redondezas era noticiada pelos jornais locais. Pouco depois, a quadrilha foi
identificada, e qual não foi o choque quando descobrimos que um vizinho nosso,
branco e de classe média, estava envolvido. Na mesma época, acordamos certa
manhã de sonos intranquilos com a Polícia Federal à porta do prédio. Os agentes
estavam em busca de um morador, querido por todos, que integrava um suposto
esquema ilegal de fabricação e comércio de couro. A realidade desmentia a tese
daquela senhora que se gabava de ter livros por todo canto de casa, embora não
tivesse olhos para entender o mundo para além da própria janela. “A insegurança
é sempre o outro”, concluía comigo mesmo, sem jamais dizer nada.
À medida que me adaptava à vida em São
Paulo, e aos círculos menos inóspitos da vida universitária, me acostumei a
falar em guetos. Neles, enquanto tentávamos entender a lógica da discriminação
em um país ainda marcadamente desigual, dividíamos nossas angústias como numa
roda de reabilitados. Falávamos da tia racista que achava um absurdo o namoro
do artista mulato com a atriz branca. “Preconceito contra eles mesmos”, repetia
a parente, para a concordância bovina de todos à mesa.
A
sequência era conhecida. “Bons eram os tempos dos militares; tomávamos
cascudos, mas andávamos na linha”. “O Brasil é um país de belezas naturais e um
povo criado na malandragem”. “Político é tudo igual”. “Virou gay porque faltou
chinelada”. “Virou lésbica porque não encontrou o cara certo”. “Ninguém mandou
usar saia”. E etc, etc. Nos círculos sociais, lidamos o tempo todo com
autodidatas especializados em política e sociedade.
Toda vez que essas conversas reaparecem,
é como se eu tivesse a chance de rebater aquela vizinha, já sem as amarras da
imaturidade. Dias atrás ela reapareceu em uma conversa num Café decorado e com
ar-condicionado. Vestia terno e tinha certeza que o calor tropical inibia a
vocação do brasileiro ao trabalho. Exatamente à sua frente, separado apenas por
um vidro blindado, um pedreiro se derretia para erguer um muro de tijolo sob o
sol a pino. Pensei em apresentar um para o outro, mas, como sempre, calei.
“Deixem falar. São só ignorantes”, dizem
os amigos, enquanto guardam os cartuchos para os grandes debates com
professores, autoridades públicas, grandes corporações, etc.
A
verdade é que nessas manifestações gratuitas de ingenuidade/ignorância não está
o exercício saudável do debate. Está a fórmula autoritária de falar e ser
ouvido e, se rebatido, correr para a linha segura do tatame com uma velha
muleta: “É só a minha opinião, você precisa respeitar”. Confundimos, então,
silêncio com respeito, e determinamos arbitrariamente quem merece e quem
não merece ser contrariado. Aquela lição canhestra herdada da ditadura, a de
que política não se discute, ainda faz estragos: dizer o que se pensa se
transformou em uma espécie de pregação a convertidos. Por aqui, debate,
conflito e contraponto não sensibilizam consensos, mas melindres. Por isso, e
para evita-los, calamos.
Tempos
atrás, quando todos pareciam satisfeitos em seus quadrados, essas pontas de
fagulha pareciam inofensivas. Agora os tempos mudaram. Em parte devido à
conjuntura mundial, em parte devido a apostas equivocadas dos governos locais,
em parte devido à insensibilidade para perceber que os modelos se esgotaram, o
cobertor se encurtou, as saídas se estreitaram, a crise se avizinhou, o pirão
acabou e a primeira reação nesses guetos é garantir primeiro a sua farinha.
Como? Com balas.
Aquele desprezo em relação ao “outro”
se transformou em solução para o mundo. “Se ele se beneficiou de uma estrutura
que já não me beneficia; se ele quer acesso a um sistema que antes era apenas
meu; se ele votou ao contrário das minhas convicções, então não são seus
contrapontos que precisamos eliminar; são os seus autores”. Por isso temos
assistido a uma escalada assustadora de discurso de ódio e incitação à
violência em tempos recentes.
O
mundo ficou mais complicado e, à medida que se complicou, se tornou um
território propício para associações desastradas de ideias. Elas pipocam o
tempo todo em todo canto. Acuados, grupos antes hegemônicos encontraram, nos
impasses da crise política e econômica (não necessariamente nessa ordem),
pretextos para tirar do armário todo o desprezo guardado por minorias e
sistemas de representação democrática – a começar pelo direito ao voto. Erra
quem pensa se tratar de uma disputa entre elite e remediados. A disputa é
normativa, e leva muita gente das classes menos abastadas a reproduzir absurdos
em público – para não dizer criminosos.
Durante a semana, relatei em minhas
redes a história de um palhaço (literalmente) que entrou no ônibus de Vinhedo à
Unicamp para pedir dinheiro a um projeto social e pregar a palavra do Senhor. A
sessão se transformou numa aula de misoginia: o sujeito atribuía à novela a
decadência das famílias. Pela sua lógica, os homens andavam violentos porque
estavam cansados de serem trocados pela TV. Pior: quando agiam, tornavam-se
vítimas de leis como a Maria da Penha. Entre risos e pausas para a reflexão, o
sujeito se queixava das aleivosias precoces das meninas, que engravidavam cada
vez mais cedo e cada vez mais cedo lotavam hospitais com casos de câncer de
mama. Porque o peito foi feito para amamentar, dizia o palhaço, não para
silicone. Aquele discurso comum, que vem desde Eva e coloca o homem como vítima
de demônios exteriores a ele – a tentação, a opressão da lei, a novela, as
saias – é a argamassa da cultura do estupro que tanto refutamos quando ela se
manifesta entre os formadores de opinião, sobretudo apresentadores babetas de
talk show. É também a argamassa de políticos conservadores que fazem do espaço
público uma cruzada para bandeiras medievais. Mas só reagimos quando o estrago
já está feito – e a ideia torta de mundo virou projeto de lei ou corrente de Facebook.
Por isso decidi contrapor o palhaço.
Disse que ele ofendia as mulheres daquele ônibus ao justificar a violência
masculina e ao associar uma doença grave com uma questão moral. Foi chato. Foi
duro. Gaguejei. Passei o resto da viagem com os olhares voltados a mim até meu
ponto. Mas falei – e só assim o palhaço parou de dizer groselhas no ônibus, e
as pessoas pararam de concordar. Ou fingir que concordavam.
Pode parecer uma bobagem (e talvez
seja), mas deixar passar a oportunidade de rebater um argumento torto porque
a pessoa é ignorante ou mal informada não nos torna respeitosos ao diálogo. Só
nos torna coniventes. E arrogantes, porque escolhemos
arbitrariamente quem merece ou não ser contestado – e o sujeito humilde, como o
palhaço do ônibus, não é menos digno de arremedo do que de pena.
Por isso, amigos, nesses tempos de
confusões galopantes e buscas por soluções fáceis, não deixem os absurdos
ficarem como a última palavra. Ninguém é dono da verdade, mas quando o absurdo
se torna verdade é porque alguma coisa saiu errada. Porque a razão se acomodou
no gueto dos entendidos e não quer descer do pedestal. Pois desçam. Ninguém vai
matar de raiva ou de fome se, ao defender a limpeza ética dos ditadores, for
lembrado que o mais duro dos generais-presidentes adotou a própria neta para
estender a pensão vitalícia para a família. E que a farra das pensões de gente
graúda pesa mais aos cofres públicos do que qualquer (assim chamada) “esmola”.
Ninguém fará estragos se perguntar ao
entusiasta de regimes autoritários qual a vantagem entre poder investigar
desvios públicos e não poder – ou levar para o camburão quem ameaçar
desobedecer. Ou quais foram mesmo os crimes cometidos por opositores
“suicidados” nos porões do regime por terem simplesmente feito o que se faz hoje
nas ruas: contestar. Ou qual o país que instituiu a pena de morte e controlou a
violência dita “endêmica”. Ou qual o país onde deputados aceitaram propina para
colaborar com uma empresa inexistente criada por uma reportagem de jornal (eu
conto: a Inglaterra).Também não fará mal a ninguém perguntar onde está escrito
na Bíblia que as lâmpadas fosforescentes podem ser usadas contra casais do
mesmo sexo. Ou do que exatamente nos defendem os Gladiadores do Altar". Ou
questionar quais são mesmo as demandas históricas de brancos e heterossexuais
que, acuados pela "ditadura gay", querem sair às ruas para defender
direitos que lhe são negados.
São só perguntas, e não podem ofender
mais do que o silêncio de quem é diariamente ofendido pelos absurdos que
podem ser só absurdos, mas entram na história como a última palavra.
Um comentário:
Muito bom Toninho!
Confesso que no começo, vi que o texto era longo e cheguei a pensar em desistir de ler, porém o conteúdo me envolver e chega a tocar nos calos que escondemos ou fingimos não ver, por medo. O fato de ficarmos calados e os relatos citados em sua postagem, me fez recordar daquela poesia, que nos faz refletir sobre a questão " de não questionar",("Na primeira noite, eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim: não dizemos nada.
Na segunda, já não se escondem. Pisam as flores, matam o nosso cão e não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada").
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